O Supremo decidiu que o artigo 19 do Marco Civil da Internet é inconstitucional. Os legisladores e a nação debateram por três anos essa lei, que foi sancionada por Dilma em 2014. Por mais de dez anos esse artigo vigorou e regeu as relações na internet, respeitando a liberdade de expressão e impedindo a impunidade dos que cometessem crimes nas redes. Aí, no ano véspera de eleição, a esquerda constatou sua debilidade no novo mundo digital, e entrou em campanha para que o Supremo concordasse com um recurso extraordinário para que as próprias plataformas fizessem censura, antes do recurso à Justiça previsto no artigo 19. A esquerda já havia tentado censura pelo Congresso, sem êxito. Em Pequim, Lula chegou a pedir a Xi Jinping um enviado para ensinar como o governo brasileiro poderia fazer. E Janja explicou que era porque a direita predomina no espaço digital. Agora mesmo o governo Lula avançou mais um pouco, elevando a classificação indicativa do Instagram para 16 anos.

Pois o Supremo decidiu que o artigo é inconstitucional. E agora? Vai redigir outro artigo, diferente do debatido, decidido, aprovado pelos legisladores e sancionado pela presidente? Redigir lei sem o poder dado pelo voto, como está no parágrafo único do primeiro artigo da Constituição (“todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente”)? Os que divergem do magistral voto do ministro André Mendonça sugerem um novo texto, como se fossem deputados ou senadores discutindo um projeto de lei numa comissão. Sugerem que as plataformas retirem sumariamente pornografia infantil, incitação ao suicídio, tráfico humano, terrorismo. Mas isso já está nas regras das plataformas, que dispõem de algoritmos para impedir postagens. Também há, nas plataformas, lugar para denúncia de publicações nocivas.
No entanto, incluem também censura a ameaças ao Estado Democrático de Direito. E nós todos sabemos que a primeira das ameaças é o não cumprimento da Constituição, principalmente por aqueles que juraram defendê-la… Entra-se aí no campo político e subjetivo. O que é ameaça para o governo? A oposição. O que é ameaça para a oposição que era governo? O governo que entrou, em saudável alternância. O que se vai censurar na verdade é a ágora digital, que amplia a voz de cada fonte primária de poder. Para evitar isso, os americanos têm sua sólida democracia ancorada na liberdade de expressão. E vale para republicanos e democratas. E há o perigo de isso desestimular as plataformas e fazê-las abandonar o Brasil, e de o Estado impor suas plataformas controladas, como na China.

Um ensaio de George Orwell ensina que censura só existe se a opinião pública permite. Houve uma imensa omissão de grande parte da mídia, o que contraria princípios básicos de jornalismo, de defesa das liberdades. Há sempre um chavão para justificar a supressão de liberdades. O preâmbulo do abominável AI-5 argumentava que seria para “assegurar a ordem democrática, baseada na liberdade e no respeito à dignidade humana”. É impossível defender a democracia sem respeitar as liberdades e o devido processo legal. A liberdade de expressão é o cerne da democracia; a censura é a cara do arbítrio, da tirania. André Mendonça honra a universidade onde conquistou o doutorado, a de Salamanca, uma das melhores do planeta, marcada pelo humanismo, onde foi reitor Miguel de Unamuno. O voto dele é uma âncora da democracia. Votos divergentes são os outros. Como o colibri da fábula, o voto dele despeja sobre nós gotas de exemplo de defesa da liberdade de expressão para que o fogo da censura seja extinto e viceje a floresta heterogênea da democracia.
Uma palavrinha sobre o voto de André Mendonça. Como na fábula do colibri que, gota a gota no bico, combatia o incêndio na floresta, o ministro fez a sua parte na defesa das liberdades e da ordem institucional. Contrariando o princípio de que o jornalista não deve se entusiasmar com a notícia, expressei no meu canal de YouTube que o didático voto deveria ser publicado em livro, para ensino em faculdades de Direito. A opinião de juristas confirmou meu entusiasmo. Mas fiquei ainda mais certo da importância fundamental do voto — embora tenha sido voto vencido — quando li editoriais apoiadores em dois dos mais importantes jornais do país: Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo.
O editorial de Folha já no título afirmava que “Mendonça está certo”. E atestou que o ministro resguarda direitos fundamentais “que têm sido ignorados”. E denunciou que “ordens secretas, sem que o acusado possa saber da acusação, remetem às piores práticas do absolutismo e constituem uma abominação”. Depois, a Folha previu que “o juízo de bom senso e de rigorosa aderência aos princípios constitucionais expressados pelo ministro tende a ser francamente minoritário na cúpula da Justiça. STF”. E terminou constatando que o Supremo “caminha para mais invasão de atribuições do Legislativo”.
O Estadão foi ainda mais contundente no editorial daquele sábado. Já no título qualificava a participação do ministro de “um voto pela razão”. O jornal defendeu o artigo 19 do Marco Civil da Internet como um modelo que impede tanto a censura privada quanto a impunidade. O editorial disse que os votos de então, de Fux e Toffoli, “atropelam o devido processo legal”. Resumo aqui a densa opinião do Estadão: “Contra essas tendências alarmantes, se ergueu o voto de André Mendonça. Com raciocínio robusto, reafirmou a liberdade de expressão como pilar do Estado Democrático de Direito e rejeitou o ativismo judicial. Cabe ao Congresso deliberar; não é papel do STF reescrever lei. O voto de Mendonça não é só tecnicamente impecável; é um alerta institucional e uma reafirmação da separação de Poderes”. E concluiu de modo lapidar: “Em tempos de histeria regulatória, é bom saber que ainda resta, na mais alta Corte, quem compreenda que a liberdade de expressão é o primeiro e o último bastião das sociedades livres”.

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Magistral o artigo de Alexandre Garcia ,André Mendonça deu o único voto que realmente fez justiça a liberdade de expressão. Sem liberdade estaremos condenados a submissão e tirania.