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Edição 267

O preço da liberdade nas mãos do STF

Mesmo depois de aceitarem o acordo da PGR, manifestantes do 8 de janeiro continuam com a vida suspensa

Durante uma sessão plenária no Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2024, o presidente Luís Roberto Barroso exaltou o acordo de não persecução penal (ANPP) oferecido pela Procuradoria-Geral da República (PGR) a presos do 8 de janeiro. Somente os detidos nos acampamentos montados nas cercanias do Quartel-General do Exército (QG), em Brasília, têm o à tratativa da PGR. Conforme o juiz do STF, o ANPP é uma negociação “moderada”, com termos “razoáveis”. Segundo Barroso, a multa de “só R$ 5 mil” seria paga apenas por quem tivesse condições de arcar com ela. Por isso, para o magistrado, quem não aceitou o ANPP o fez por “clara manifestação ideológica”, a fim de vender a imagem de preso político.

A história de Flávio Soldani, de 58 anos, mostra que a narrativa de Barroso não resiste aos fatos. Mesmo sendo morador de rua e sem qualquer coloração político-partidária, Soldani foi informado de que, para o ANPP, teria de itir crimes e desembolsar a quantia exigida pela Justiça, além de fazer um curso pela democracia e realizar trabalho comunitário. Os termos são os mesmos para todos os presos que cedem ao ANPP. “Não tenho dinheiro para comer, como vou pagar multa?”, interpelou o homem, durante uma audiência com um juiz auxiliar do gabinete do ministro Alexandre de Moraes. “Também preciso de um local para guardar as minhas coisas e fazer o serviço voluntário.”

A oferta da negociação foi feita logo depois de Soldani ter sido preso em uma manifestação pela anistia, na Avenida Paulista, em março deste ano, devido a uma denúncia anônima. Foi a segunda vez que ele acabou detido pela polícia. A primeira ocorreu em 9 de janeiro de 2023, no QG de Brasília, onde dormia e se alimentava. Um mês depois de a Revista Oeste revelar sua prisão mais recente, em São Paulo, Moraes mandou soltá-lo. Até o momento, porém, o morador de rua não conseguiu firmar o acordo. A Defensoria Pública da União, que cuida do processo, luta para viabilizar uma tratativa com a PGR que seja compatível com a situação de extrema vulnerabilidade social do homem.

8 de janeiro morador de rua
O morador de rua Flávio Soldani, de 58 anos, durante audiência com juiz auxiliar do gabinete de Moraes, após ter sido preso em uma manifestação pela anistia ao 8 de janeiro (17/3/2025) | Foto: Reprodução

Pesadelo sem fim dos presos do 8 de janeiro

Mesmo os que conseguiram o ANPP permanecem no purgatório dos inocentes, e a esperança de um futuro melhor continua sendo uma miragem. É o caso de Willian Santana, 31, que só ficou livre da tornozeleira eletrônica em 8 de março deste ano, embora o ministro Alexandre de Moraes tenha homologado a tratativa 11 meses antes. Quando o STF permite o ANPP, o equipamento tem de ser removido o mais rápido possível. Nesse período, Santana perdeu uma série de oportunidades de emprego, por não poder se locomover livremente em Ji-Paraná (RO), onde mora. A falta de serviço comprometeu a renda familiar, que já estava fragilizada em virtude do tempo que ele ficou preso na Papuda. Por isso, Santana, que é arrimo de família, não sabe de onde vai tirar os recursos necessários para pagar a multa.

A defesa de Santana contou que somente agora a Justiça vai informá-lo de quando deverá dar início ao cumprimento das horas de trabalho comunitário e do “curso pela democracia”. “Já era para ter concluído o ANPP há bastante tempo”, desabafou a advogada Taniéli Telles, que cuida do processo de Santana. “Mas só agora é que ele vai dar o primeiro o, de muitos, até encerrar o acordo.” Apesar de o ANPP ter sido autorizado pelo ministro, Santana tinha de prestar, obrigatoriamente, esclarecimentos todas as segundas-feiras na comarca responsável pela fiscalização de presos. Essa etapa se torna desnecessária para as pessoas que conseguem celebrar a negociação com a PGR.

8 de janeiro
O vendedor Willian Santana e sua família. O homem firmou o ANPP da PGR na esperança de pôr um ponto final no 8 de janeiro | Foto: Reprodução

Os problemas com o ANPP ocorrem também com Indianara Corrêa, de 34 anos. A catarinense de ville já começou a cumprir alguns termos desde a homologação, em julho de 2024, mas não tem como prosseguir. Mãe de uma criança de colo, precisa cuidar da bebê e, por isso, ainda não fez o serviço comunitário. O próximo obstáculo vai ser a multa. O advogado dela, Ezequiel Silveira, conseguiu diminuir o valor para R$ 1,6 mil; todavia, a mulher não tem recursos. Ela e as três filhas menores sobrevivem graças a doações e à aposentadoria da mãe. O dinheiro que mal dá para comprar comida também não é suficiente para reparar o imóvel da família, que se encontra em estado muito precário. Há poucas semanas, a residência quase desabou por causa do apodrecimento das madeiras que sustentam o telhado.

Imagem mostra condições das madeiras que sustentam a casa de Indianara | Foto: Reprodução
Indianara foi presa no QG de Brasília, no dia seguinte ao 8 de janeiro de 2023 | Foto: Reprodução

Antes de ser presa, Indianara tinha uma loja de roupas, mas o estabelecimento faliu. Sem experiência com vendas, a mãe da mulher precisou vender tudo para pagar as contas que se acumularam aos montes enquanto a filha, que era a provedora do lar, esteve presa na Colmeia (DF) por dois meses. Assim como muitos manifestantes do QG, Indianara aceitou o ANPP por desespero, na tentativa de seguir a vida e por entender que seria a melhor saída para ela.

O mesmo ocorreu com uma mineira de 32 anos, que tem medo de se identificar. A aflição dela, contudo, se deu em razão de uma doença grave do pai descoberta no ano ado. “Não queria fazer o acordo, mas aceitei para ajudar e ar os últimos dias com ele”, contou a mulher, que mora em Uberaba, ao mencionar as idas e vindas ao hospital que precisou fazer, visto que a família não tinha condições de arcar com acompanhantes. Sem a tornozeleira, a locomoção seria mais fácil, além de tentar arrumar algum trabalho. Ainda desempregada, a mulher não tem dinheiro para arcar com os R$ 5 mil que precisam ser pagos à vista. “Quando o ministro homologou o meu acordo, em meados de outubro de 2024, deu menos de 30 dias para eu quitar tudo. Como?”

Nem sequer os manifestantes que já terminaram o ANPP têm paz. Um homem de 48 anos, morador de Brasília, cumpriu todos os requisitos exigidos pela PGR, inclusive o depósito da multa — que conseguiu emprestado com amigos. Mesmo assim, os bens e suas contas continuam bloqueados. Por isso, o dinheiro que ganha como autônomo tem de ser depositado no banco de terceiros, que sacam a quantia e ream para ele. “Não entendi por que a minha situação continua assim, se já cumpri tudo”, lamentou. “É um inferno interminável.”

O homem relatou que sua mulher, de 50 anos, encontra-se em situação ainda pior. Presa com ele no QG, ela também concluiu o ANPP. No entanto, repentinamente, a PGR e Moraes anunciaram o rompimento da tratativa, sem maiores explicações. “Tudo isso depois de o acordo ter sido firmado, todas as obrigações cumpridas e, principalmente, a multa paga”, contou o marido. “Tiramos dinheiro de onde não tínhamos. Minha mulher voltou a usar a tornozeleira eletrônica que havia sido removida assim que ela celebrou a negociação. É a repetição de um pesadelo sem fim. Parece que fica tudo ao bel prazer do ministro do STF. Ele homologa o ANPP e o cancela quando dá vontade.”

Caminho para a liberdade

Para obter os votos da oposição e se eleger presidente da Câmara, o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) se comprometeu com a anistia. Depois de algumas viagens com Lula e ministros do STF, porém, parece ter se esquecido da promessa que firmou com os parlamentares da oposição. Há algumas semanas, os conservadores obtiveram os votos necessários para pautar o texto que estabelece o perdão. Cabe a Motta, agora, respeitar a vontade da maioria na Casa.

Hugo Motta (Republicanos-PB), presidente da Câmara dos Deputados, em reunião de líderes da Câmara dos Deputados, em Brasília, DF (3/4/2025) | Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados

Enquanto o presidente da Câmara segura uma pauta urgente, milhares de pessoas permanecem em sofrimento nos cárceres do STF. Como costuma dizer o jornalista Augusto Nunes, ao ceder à pressão do governo federal e do Poder Judiciário, Motta deixa claro que “certas manifestações de covardia exigem mais coragem do que muitas demonstrações de bravura”.

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9 comentários
  1. José Pedro Scatena
    José Pedro Scatena

    O que imaginam ser o valor de R$5.000,00 pessoas que gozam de refeições diárias com lagostas, champignons e vinhos premiados? Irrisório. Então, impor o pagamento desse valor como pena alternativa a prisão chega a ser, em suas considerações,um ato de clemência. Mas essa reportagem de Cristyan mostra que o que impera no Pretório Excelso é pura demência, com pitadas de psicopatia.

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Parabéns Cristyan, por sua brava atuação nos mostrando as injustiças que vem sendo cometidas contra estes pobres coitados. Cedo ou tarde a verdadeira justiça chegará para eles.

  3. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Cristyan, o Brasil e os brasileiros de bem não merecem viver nesta ditadura.
    Já foram longe demais e onde nem os governos militares 1964-1985 ousaram fazer atos semelhantes.

  4. Virgílio Cardoso naves
    Virgílio Cardoso naves

    O sadismo destes ministros do STF não tem limites

    1. Francisco Nascimento Garcia
      Francisco Nascimento Garcia

      A soberba desses sinistros do STF os impedem de terem compaixão, empatia e amor ao próximo! Sempre agem na base do poder pelo poder!

  5. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Mais um excelente artigo de Cristyan Costa. Somente aqui,temos as reais notícias do que esses acusados de absolutamente nada am em suas vidas.Barroso vive em uma bolha, seus interesses políticos e pessoais o impedem de entender que cinco mil reais é muito dinheiro para o brasileiro. É repugnante ouvir um disparate desse.Esses acusados, só conseguirão a liberdade de fato, sem as amarras jurídicas ,com a anistia geral e irrestrita.

      1. Francisco Nascimento Garcia
        Francisco Nascimento Garcia

        Parabéns Cristyan Costa! 👏👏👏
        Cada vez mais você mostra o seu valor enquanto pessoa e jornalista!

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